quinta-feira, 14 de abril de 2022

 

O que aconteceu com a cruz em que Jesus foi crucificado

  • Alejandro Millán Valencia
  • BBC News Mundo
Três cruzes no entardecer

CRÉDITO,GETTY IMAGES

Legenda da foto,

Jesus morreu crucificado, segundo Bíblia

Segundo a crença cristã, Jesus de Nazaré morreu crucificado por ordem do então prefeito romano na Judéia, Pôncio Pilatos, e sua jornada até seu calvário - uma série de episódios conhecidos como Paixão - é um dos elementos centrais celebrados na Semana Santa.

A crucificação foi tão importante na história do Cristianismo que a cruz acabou se tornando o símbolo das religiões que professam devoção à figura de Jesus Cristo.

Mas o que aconteceu com a cruz em que Jesus morreu?

Dezenas de mosteiros e igrejas em todo o mundo afirmam ter pelo menos um pedaço da chamada "Vera Cruz", a Verdadeira Cruz, em seus altares, para serem louvados por seus fiéis.

E muitos deles baseiam a veracidade da origem de suas relíquias em textos dos séculos 3 e 4, que narram a descoberta em Jerusalém do exato pedaço de madeira no qual Jesus Cristo foi executado pelos romanos.

"Esses relatos, que citam o imperador romano Constantino e sua mãe, Helena, deram início a essa história da cruz de Cristo, que sobreviveu até hoje", explica a professora Candida Moss, do Departamento de Teologia e Religião da Universidade de Birmingham, na Inglaterra, à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC. Moss é estudiosa do Novo Testamento e historiadora do cristianismo.

Ela explica que a história da cruz de Cristo é baseada nos escritos de historiadores antigos, como Gelásio de Cesareia ou Tiago de Voragine. Mas, para muitos historiadores de hoje, eles não confirmam a autenticidade dos pedaços de madeira que vemos atualmente em vários templos ao redor do mundo.

"Provavelmente esse pedaço de madeira não é a cruz em que Jesus foi crucificado", diz Moss, "porque muitas coisas poderiam ter acontecido com ela. Por exemplo, que os romanos a reutilizaram para outra crucificação, em outro lugar e com outras pessoas."

Jesus na cruz

CRÉDITO,GETTY IMAGES

Legenda da foto,

Cruz também simboliza sofrimento que Jesus suportou antes de sua morte, segundo as homilias

Mas então, por que surgiu a história da "Vera Cruz" e por que existem tantas peças que supostamente faziam parte da madeira da cruz de Jesus?

"Por causa do desejo de ter uma proximidade física com algo em que acreditamos", diz à BBC News Mundo Mark Goodacre, historiador e especialista em questões do Novo Testamento na Duke University, nos Estados Unidos.

"As relíquias cristãs são mais um desejo do que algo verdadeiro", acrescenta.

Helena

CRÉDITO,GETTY IMAGES

Legenda da foto,

Helena foi declarada Santa por Igreja Católica

'Lenda Dourada'

Pule Podcast e continue lendo
Podcast
BBC Lê
BBC Lê

A equipe da BBC News Brasil lê para você algumas de suas melhores reportagens

Episódios

Fim do Podcast

Segundo o Evangelho, após a morte de Jesus na cruz, seu corpo foi levado para um túmulo, no que hoje é a Cidade Velha de Jerusalém.

E por quase 300 anos não houve menção na narrativa cristã sobre o destino da cruz.

Foi por volta do século 4 que se acredita que o bispo e historiador Gelásio de Cesareia publicou um relato em seu livro "A história da Igreja" sobre a descoberta em Jerusalém da "Vera Cruz" por Helena, uma santa da Igreja Católica e também a mãe do imperador romano Constantino, que impôs o cristianismo como religião oficial do império.

A história, aludida por outros historiadores e escritores como Tiago de Voragine em seu livro "Lenda Dourada" do século 8, indica que Helena, enviada por seu filho para encontrar a cruz de Cristo, é levada para um lugar próximo ao Monte Gólgota, onde Jesus teria sido crucificado, e lá encontra três cruzes.

Algumas versões indicam que Helena, duvidando de qual seria a verdadeira, colocou uma mulher doente em cada uma das cruzes e aquela que finalmente a curou foi considerada a de Jesus.

Imagem de Constantino e de sua mãe, Helena

CRÉDITO,GETTY IMAGES

Legenda da foto,

Segundo vários relatos, Helena, mãe do imperador Constantino, foi quem encontrou a cruz em que Cristo morreu em Jerusalém

Outros historiadores afirmam que Helena a reconheceu por ser a única das três que apresentava indícios de ter sido utilizada para crucificação com pregos, já que, segundo o Evangelho de João, Jesus foi o único a ser crucificado desse jeito naquele dia.

"Toda essa história faz parte do desejo por relíquias sagradas que começou a surgir no cristianismo durante os séculos 3 e 4", diz Goodacre.

O acadêmico ressalta que os primeiros cristãos não estavam focados em buscar ou preservar esses tipos de objetos como fonte de sua devoção.

"Nenhum cristão no século 1 se lançou a colecionar relíquias de Jesus", diz.

"Com o passar do tempo e o cristianismo se espalhando pelo mundo naquela época, esses fiéis começaram a criar formas de ter alguma conexão física com quem eles consideram ser seu salvador", acrescenta Goodacre.

O interesse por essas relíquias tem muito a ver com os mártires.

Segundo historiadores, o culto aos santos começou a ser uma tendência dentro da Igreja e foi estabelecido desde cedo que os ossos dos mártires eram evidências do "poder de Deus agindo no mundo", produzindo milagres e outros feitos que "provavam" a eficácia da fé.

E como Jesus teria ressuscitado, não seria possível encontrar os seus ossos: segundo a Bíblia, após três dias no túmulo, ele voltou à vida e subiu ao céu. Dessa forma, os objetos vinculados a ele que sobraram foram a cruz e a coroa de espinhos.

"Este período, de quase três séculos após a morte de Jesus, é o que torna improvável que os objetos encontrados em Jerusalém, como a cruz em que ele morreu ou a coroa de espinhos, sejam os verdadeiros", observa Goodacre.

"Se isso tivesse sido feito pelos primeiros cristãos, que tiveram um contato mais próximo com o que de fato aconteceu, poderíamos falar da possibilidade de que fossem reais, mas não foi o caso."

Relíquia

Reliquia

CRÉDITO,GETTY IMAGES

Legenda da foto,

Várias igrejas ao redor do mundo afirmam ter um pedaço da cruz em que Jesus morreu

Um pedaço da cruz foi concedido à missão de Helena, levado para Roma e preservado na Basílica da Santa Cruz, na capital italiana.

Com a "descoberta", a expansão do Cristianismo na Europa durante a Idade Média e a consagração da cruz como símbolo universal desta religião, começou também a multiplicação dos fragmentos que foram parar em outros templos.

Esses fragmentos são conhecidos como "lignum crucis", madeira da cruz, em latim).

Além da Basílica da Santa Cruz em Roma, as catedrais de Cosenza, Nápoles e Gênova, na Itália, o mosteiro de Santo Toribio de Liébana (que tem a maior peça), Santa Maria dels Turers e a basílica de Vera Cruz, entre outros, na Espanha, afirmam ter um fragmento da cruz em que Jesus Cristo foi executado.

A Abadia de Heiligenkreuz, na Áustria, também guarda uma peça e outro pedaço muito importante está na Igreja da Santa Cruz, em Jerusalém.

Junto com as evidências físicas, os concílios de Nicéia, no século 4, e de Trento, no século 16, deram validade espiritual à devoção dessas relíquias.

O parágrafo 1674 do catecismo da Igreja Católica, publicado pelo Vaticano em 1992, diz que "o sentido religioso do povo cristão encontrou, em todos os tempos, a sua expressão em várias formas de piedade em torno da vida sacramental da Igreja: como a veneração das relíquias".

Cristo na cruz

CRÉDITO,GETTY IMAGES

Legenda da foto,

Segundo historiadores, devido à perseguição, primeiros cristãos não guardaram muitos objetos relacionados à presença física de Jesus

Mas o documento também indica que as relíquias em si não são "objetos de salvação", mas são meios para buscar a intercessão e "benefícios por Jesus Cristo seu Filho, nosso Senhor, que é apenas nosso redentor e salvador."

A multiplicidade de fragmentos foi questionada em sua época por vários pensadores.

O teólogo francês João Calvino, que viveu de 1509 a 1564, destacou no século 16, em meio a um boom do tráfico de relíquias em que se multiplicavam os pedaços da chamada "Vera Cruz" distribuídos por igrejas e mosteiros, que "se coletássemos tudo que foi encontrado da cruz, haveria o suficiente para encher um grande navio. "

No entanto, essa afirmação foi posteriormente refutada por vários teólogos e cientistas ao longo da história.

Recentemente, Pierluigi Baima Bollone, professor emérito da Universidade de Turim, na Itália, apontou em um estudo que se todos os fragmentos que afirmam fazer parte da cruz de Cristo fossem reunidos, chegaríamos a apenas "50% do tronco" dela.

Moss diz ser "muito provável que Helena tenha encontrado um pedaço de madeira, mas o que é muito provável também é que alguém o tenha colocado naquele lugar para dar uma ideia de que esta foi a cruz em que Jesus morreu".

A especialista indica que há outra dificuldade em provar se essas peças realmente pertenceram a uma crucificação ocorrida na época de Cristo.

"Por exemplo, a datação por carbono-14, que seria uma das primeiras coisas a fazer, é cara e uma simples igreja não tem recursos para esse tipo de trabalho", diz ela.

Oração com cruz iluminada

CRÉDITO,GETTY IMAGES

Legenda da foto,

Cruz se tornou o símbolo do Cristianismo

E mesmo sendo possível obter fundos para financiar um estudo desses, a investigação poderia danificar a relíquia.

"A datação por carbono é considerada invasiva e um pouco destrutiva", afirma Moss. "Mesmo que você precise apenas de cerca de 10 miligramas de madeira, ainda envolve o corte de um objeto sagrado," diz ela.

Em 2010, o pesquisador americano Joe Kickell, membro do Comitê para a Investigação Cética, organização sediada em Nova York, fez um estudo para determinar a origem dos pedaços que eram considerados partes da "Vera Cruz".

"Não há uma única evidência que sustenta que a cruz encontrada por Helena em Jerusalém, ou por qualquer outra pessoa, seja a verdadeira cruz em que Jesus morreu. A história da proveniência é ridícula. E seu caráter milagroso, também", escreveu Kickell em um artigo.

Para Moss e Goodacre, a chance de encontrar a verdadeira cruz de Cristo é muito remota.

"Seria necessário fazer um trabalho arqueológico, não teológico. E mesmo assim seria muito improvável encontrar uma peça de madeira de mais de dois milênios atrás", ressalva Goodacre.

Nesse sentido, para Moss, as dificuldades vêm até do objeto que estaríamos procurando.

"A palavra cruz, tanto em grego quanto em latim, se referia a uma árvore ou uma estaca em que se praticava a tortura", esclarece a historiadora.

"Em outras palavras, possivelmente estamos falando de um único pedaço de madeira ou estaca, não do símbolo que conhecemos atualmente", diz ela.

Línea

Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!

Pule YouTube post, 1
Legenda do vídeo,Alerta: Conteúdo de terceiros pode conter publicidade

Final de YouTube post, 1

Pule YouTube post, 2
Legenda do vídeo,Alerta: Conteúdo de terceiros pode conter publicidade

Final de YouTube post, 2

Pule YouTube post, 3
Legenda do vídeo,Alerta: Conteúdo de terceiros pode conter publicidade

Nenhum comentário:

Postar um comentário