Por Frank Malcher
Quando a gente quer pegar um país ou uma cidade específica dentro do Mundo das Trevas pra narrar, é comum ir pesquisar “o que os livros oficiais dizem” e então mesclar isso com o entendimento que temos do lugar. Aqui vamos fazer o exercício oposto: vamos ignorar completamente o que os livro dizem (ou deixam de dizer) sobre o Brasil, e então ver como algumas características marcantes do nosso país se traduziriam para Mago: A Ascensão (levando em conta a edição de 20 anos, que chamamos de M20, pois é a mais atual até esta data). O aviso foi dado: vamos lá!
Levando o Brasil para o universo de Mago: A Ascensão.
O mais importante, e crucial: o nome da magia no Brasil é miscigenação e sincretismo. O brasileiro médio não se contenta em ir na igreja: ele pula 7 ondinhas no ano novo, veste a roupa da cor que vai “atrair” o que ele quer pra o ano que chega, faz simpatia (ou contrata a cartomante) pra trazer a pessoa amada em três dias, e certamente sabe qual é o seu signo no horóscopo — e tá tudo bem pra todo mundo. Essa característica é comum no Brasil: se a gente provar sushi e gostar, provavelmente irá tentar fritar um “pra ver se fica bom”; certamente em vários estados existe uma versão de pizza “mineira”, “nordestina” e outras mais exóticas. Essa “anarquia de crenças” é comum no nosso país, e provavelmente é uma das nossas características principais.
Isso faz com que em outros países as fronteiras entre as Práticas e Instrumentos (os Focos) das várias facções de Magos sejam mais fáceis de definir e identificar do que as daqui. Dificilmente você vai ver um católico fazendo oferendas pra Iemanjá ou um Evangélico fazendo uma “sessão de descarrego” em outro lugar do mundo — aqui no Brasil, isso é só uma terça-feira qualquer.
O Brasil é o maior país católico do mundo, e o paraíso das igrejas neopentecostais — o que quer dizer que o número de cristãos é gigantesco. Isso, unido à forte cultura de personalização e “anarquia de crenças” brasileiras, nos permite afirmar que na prática a principal religião do Brasil é o “cristianismo self-service”: a pessoa se declara cristã, porém personaliza quais partes da doutrina acha que deve ou não seguir, caso a caso, e quais os pedaços da bíblia que “valem” (leem literalmente) e quais os que “não valem” (leem como metáfora, ou simplesmente ignoram).
Além do cristianismo e seus derivados, as religiões afro (especialmente as de matriz africana ou derivadas, como Candomblé, Umbanda, Tambor de Mina) são muito difundidas no Brasil. São popularmente chamadas de “macumba” pelas pessoas no dia a dia (especialmente as que querem falar em tom pejorativo), e fazem parte das crenças diárias do brasileiro médio. A maioria das pessoas acredita em “macumba”: seja porque praticam, porque tem medo de quem pratica, ou porque pedem auxílio a quem pratica; rara é a pessoa que é realmente indiferente em relação a ela. Curiosamente, muitos evangélicos (especialmente neopentecostais) não têm nenhum problema em acreditar ao mesmo tempo no Deus cristão, em Jesus, e também nas práticas e entidades do Candomblé ou Umbanda. Muitos evangélicos reivindicam ter sido convertidos e serem “ex-macumbeiros” que agora “encontraram a luz” e “saíram da perdição” (esses específicos infelizmente tratam as religiões afro como uma espécie de “caminho do mal”, o que gera todo tipo de preconceito e atrito).
Por todos esses fatores, podemos ver que a crença em milagres, bênçãos e maldições é extremamente difundida no Brasil. As crenças em “amuletos” de proteção (seja um patuá ou um terço ou um pingente de Nossa Senhora de Nazaré ou uma Fita do Senhor do Bonfim) e em várias entidades (sejam orixás ou os santos católicos e as inúmeras faces de Maria) também são comuns.
Traduzindo isso para o mundo de Mago a Ascensão, temos que religião afro = ofício Bata’a. Sugiro a leitura deste artigo aqui para entender melhor os Bata’a e como seria a relação deles com o Brasil; ele fez um trabalho muito melhor do que eu faria aqui pra explicar os desdobramentos dessa afirmação.
Já no caso do cristianismo, as coisas não são tão simples. Se o Brasil fosse transportado para o mundo de Mago a Ascensão, muito provavelmente o cristianismo seria a maior frente de batalha da Guerra da Ascensão (se você acha que a Guerra acabou, favor ler o M20).
Observe: o Coro Celestial, a despeito do que muitos pensam, não é uma Tradição cristã, ou católica. Para o cristianismo, o Coro é uma Heresia, porque ele aceita a existência de outros deuses, e ainda os colocam como se fossem o mesmo deus cristão (é o tipo de coisa que a Inquisição medieval te queimaria na fogueira, e depois se pudesse te ressuscitava só pra poder queimar de novo). A ideologia do Coro Celestial é fazer com que seus membros (e a humanidade) se liguem ao sagrado e ao divino em seus próprios termos pessoais, porque aceitam que deus tem várias faces extremamente diferentes, e que brigar por conta dos detalhes dessas faces só gera desunião e dor. O importante não é que “todos cantem as mesmas notas”, e sim que “todos os cantos soem com harmonia”. Em outras palavras, um Desperto brasileiro que acredita que sua magia é um dom divino, e que segue o padrão “self-service” de religião, muito provavelmente seria recrutado pelo Coro. Observe que mesmo que a religião dele seja afro, o que define se vc está mais alinhado com o Coro ou com os Bata’a (ou qualquer outro) é o modo pelo qual você se relaciona com o “sagrado”: se você tem uma pegada mais “devocional”, mais ou menos como católicos apostólicos tradicionais vêem os santos, você provavelmente se sentirá mais a vontade no Coro do que entre os Bata’a. E dentro do coro não há preconceito em relação “à face” do teu deus; desde que você “cante com harmonia”, pra o Coro não interessa se você pede a interseção de um orixá, de um santo, de Maria, ou de um anjo, ou de um deus hindu.
Contudo, existem aqueles cristãos que não aceitam a existência (e muito menos a devoção) de nenhuma outra entidade ou deus que não seja o seu próprio. É claro que há desses dentro do Coro Celestial, mas muito provavelmente são recém-chegados; não tem como evoluir no caminho do Coro (Arete) se você se mantiver nessa crença. Só que existe uma outra facção no Brasil que está muito mais alinhada a esse tipo de crença: o Ofício dos Templários. Surpreendentemente, os Templários têm certa força no Brasil — é o único Ofício junto com os Bata’a com uma representatividade genuinamente nacional. Os Templários creem que são “soldados do exército de Jesus” (lhe parece familiar?) e que sua magia na verdade são milagres e dons divinos. Como qualquer outra facção mágika, eles não são perfeitos: os Templários são reconhecidamente machistas (só deixam homens ficarem em posição de liderança e guerra; as mulheres são minoria, e quando são aceitas, ficam com papéis de “curandeira” e “cuidadora” dos feridos e das crianças ao invés de ir para o “front”), e além disso, também são beligerantes (a maioria passa por treinamento militar igual ao do exército, porque eles levam a questão do “lutar ao lado de jesus” bem literalmente).
E agora fica muito mais claro porque afirmamos que o cristianismo seria o “front da Guerra da Ascensão” no Brasil: porque a fé é um campo fértil para plantar ideias e ações cada vez mais radicais, e os inimigos sabem disso. Observe: é muito mais fácil para um Nefandi fazer uma pessoa assassinar outra se ele conseguir se aproveitar da fé dessa pessoa, e convencê-la que o alvo merece morrer porque ele “não é uma pessoa do bem”. E pior do que isso, fica mais fácil fazer com que o agora assassino não tenha remorso sobre o que fez, ou pior: tenha prazer ou satisfação em fazer isso, e, portanto, o faria (fará?) de novo. A mesma fé que serve de porta de entrada para a Magia de tantos brasileiros, também é o cavalo de Tróia para a ideologia Nefandi e Tecnocrata.
O Poder do Dinheiro…
Tecnocrata? Sim, você leu corretamente. À primeira vista, a tecnocracia parece ser fraca no Brasil — uma enorme parcela das pessoas nem mesmo acredita em ciência!!! — mas não é assim que as coisas funcionam. O mais correto seria dizer que as Convenções mais “técnicas” e “tecnológicas” da Tecnocracia tem dificuldades no Brasil. O Paradigma local não é propício à super-ciência Vulgar da Iteração X e dos Progenitores. Mas não podemos esquecer dos dois maiores poderes mundanos que existem no Brasil — e porque não dizer, que na prática são donos do Brasil: a mídia e o dinheiro.
Mesmo os brasileiros mais místicos (ou devotos) têm um ponto fraco por dinheiro, e acreditam muito mais do que deveriam na mídia de massa (especialmente na TV e em Fake News de Whatsapp e Facebook). Não precisa pensar muito para chegar à conclusão que o Sindicato e a NOM são os verdadeiros “donos” do Brasil, e se comportam mais ou menos como um casal que administra uma única empresa: estão do mesmo lado, mas como diriam no Brasil, estão sempre “entre tapas e beijos”. A Tecnocracia brasileira simplesmente fará o que for preciso pra se manter no poder — mesmo que isso signifique usar as crenças adormecidas como “cavalo de Tróia” para seu controle.
Se você quer verossimilhança em seus jogos de Mago a Ascensão no Brasil, tenha isso em mente: cada vez que a fé é transformada em fanatismo, é um peão a mais para os Nefandi e um místico a menos para as Tradições, Ofícios e Órfãos. Cada vez que a fé é corrompida em um desejo descabido de possuir mais e mais e mais dinheiro ou bens materiais, ou então de dar os seus bens materiais numa espécie de “compra” ou “investimento” para a igreja (um verdadeiro “mercado da fé”), esta é uma conversão bem-sucedida de poder (e até mesmo de Energia Primal) para o Sindicato — porque mesmo que a fé esteja lá, no fim das contas nestes casos o dinheiro é o verdadeiro dono da pessoa. Cada vez que uma pessoa acredita mais na TV e nas Fake News do que na realidade que está na sua frente todo dia, é uma vitória para a NOM e seu poder sobre as crenças das Massas — e tanto faz se foi pelo telejornal, pelas novelas que tanta gente ama, ou por um programa de televangelismo. E nos casos realmente hediondos, onde os “líderes da fé” ao mesmo tempo alimentam o medo, a ignorância e o ódio dos fiéis contra seus inimigos enquanto usam canais bancários ou empresariais estáveis de fluxo financeiro para encher continuamente os seus bolsos com o dinheiro dado pelos seus seguidores fiéis, temos a vitória dos Barabbi do Sindicato.
Mas nem só de cristianismo vive o Brasil. Nossa herança negra e indígena nos traz chás, óleos vegetais, garrafadas (são as nossas “poções”), cascas de árvore, amuletos, simpatias… é a magia que é “cortada 3 palmos acima da raiz”, “cozida da noite pro dia”, e “tomada por 7 dias antes de ir dormir”. É a magia das figas, óleo de genitália de boto e muiraquitãs. Essa é a Magia Natural, essencialmente Verbena, que ao invés de “vir da força de vontade e do conhecimento erudito” (e todo aquele blá blá blá Hermético), é aquela que é feita com as mãos e que desconhece as fronteiras entre um chá de camomila mundano e um chá de camomila com um efeito calmante potencializado pelo Arete do místico.
O Brasil é riquíssimo em sua variabilidade cultural, então, ainda há muita coisa além dessas para serem exploradas nessa brincadeira de traduzir nosso país para o mundo de Mago a Ascensão (por exemplo, os Pajés são os nossos Oradores dos Sonhos). Infelizmente este texto já está muito maior do que deveria ter sido, então, considere-o como um ponto de partida para pensar sobre o “Brasil in the Darkness” de Mago: A Ascensão.
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Fanpage brasileira do universo clássico de RPG de Mesa, Mundo das Trevas (World of Darkness).
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