quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Carta Aberta


Petrópolis, 13 de maio de 1980


Meu caro amigo,


Justamente por ser hoje 13 de maio, estou lhe escrevendo esta carta. Por que hoje? Porque foi esta a data marcada pelos Borboletas Azuis, uma estranha seita que surgiu no nordeste, para o início do fim do mundo. Segundo eles, as chuvas torrenciais que irão cobrir nosso planeta de água iniciarão hoje.

Olho pela janela e vejo um céu azul e muito limpo, bem diferente daquele céu que a gente imagina para os dias apocalípticos. Nem uma nuvem.

Fico então a imaginar a quantidade enorme dos seguidores desta seita que, neste momento, talvez, estejam se preparando, movimentando suas famílias e seus pertences, para poderem escapar de um cataclismo iminente. Penso também há quanto tempo estarão conduzindo suas vidas para este momento. E, se nada acontecer, o que vai ser feito de sua fé, de sua razão para viver?

Isso não me surpreende. Quantas vezes, quantas seitas causaram pânico na multidão de seus seguidores, profetizando para hoje ou para amanhã o dia do Juízo Final?

Fico pensando nesta necessidade estranha que têm as pessoas de acreditarem em alguma coisa, de aceitarem algo como verdade insofismável e, então, traçam os rumos de suas vidas visando uma meta tão ilusória!

Fala-se tanto em final dos tempos... mas quem estará com a Verdade? São João Evangelista? Nostradamus? Júlio Verne? Os Borboletas Azuis? Onde estará a verdade?

E, à propósito, o que é a Verdade?

Quanto mais penso, mais concluo que não consigo compreender o que possa ser a Verdade. Já descobri que as verdades que nós conhecemos foram criadas pelos próprios homens. E são os homens perfeitos para criarem verdades? Em que podemos confiar para termos uma base sólida que possa sustentar as verdades em que acreditamos? Nossos sentidos?

Engraçado, quando eu era pequena, ensinaram-se que só se deve dar crédito àquilo que a gente pode pegar, cheirar, ver, ouvir ou provar. O resto é ilusão, é fantasia. Mas agora, disto eu tenho dúvidas. O sabor, por exemplo, é algo em que não confio. Como posso confiar, se existem coisas que para uns são deliciosas e para outros insuportáveis? Milhares de pessoas se deliciam com pratos feitos com peixe cru e outras tantas apreciam o queijo estragado. Então, só podemos dizer se a coisa tem gosto bom se a provarmos. Não podemos acreditar na verdade que os outros nos dizem. E, quando chegamos à conclusão que um alimento tem ou não um bom sabor, esta conclusão só serve para nós, pois os outros podem ter opiniões diferentes das nossas. E, ainda por cima, se inibirmos os nervos que ligam o paladar ao cérebro, não sentiremos o menor sabor naquilo que comemos. Então onde, na verdade, está o gosto? No alimento, no paladar ou no nosso cérebro? E alguém me disse que eu devia confiar apenas nos sentidos, pois somente eles transmitem a nós a realidade que nos cerca.

Bom, os sentidos são cinco. Cheguei à conclusão que não posso confiar muito no paladar, mas ainda restam quatro.

Mas estes quatro são bem depressa reduzidos a três quando me lembro quantas pessoas já morreram, traídas por seu olfato, que não lhes avisou do gás que escapava ou do fogo que começava a destruir suas casas.

Mas, tudo bem, ainda temos o tato, a audição e a visão.

Mas o tato também falha tanto! Até o frio e o calor, duas sensações tão diferentes, podem confundir-se para nós. O frio muito intenso dá a impressão de queimadura. Se mergulharmos uma de nossas mãos em água quente e outra em água fria e, depois, mergulharmos ambas em água morna, esta parecerá quente para uma das mãos e fria para a outra.

Onde está a verdade? Nos sons que ouço? Mas eles também me confundem, principalmente porque sei que existem sons que não ouço, sons infinitamente sutis que um animal percebe e eu não. E, mesmo aqueles que percebo, como posso defini-los? Se um ruído para mim é insuportável e, para outros, agradável? Se, às vezes, ouço sons que os outros não ouvem? Se fico tentando inutilmente descobrir de que lado vem um ruído? Que som é o som real?

E a visão? Quedo-me na contemplação silenciosa de uma estrela que já pode ter deixado de existir há milhares de anos.

Olho as cores, mas sei que as nuances que vejo podem não ser as mesmas que você vê. Para os daltônicos, as cores apresentam outros significados, se vemos uma tonalidade à luz do dia, a mesma nos parecerá diferente à luz do luar.

Assim como o conceito de belo e feio. Os homens criaram os padrões de beleza e a eles fazem suas comparações. O que é belo para uns, não o é para outros.

Olho uma circunferência e, dependendo de minha posição, ela me parece uma elipse. As formas variam de acordo com o pondo de vista de onde são observadas.

Tenho uma laranja em minhas mãos, posso vê-la, seni-la, mas se esta mesma laranja estiver a alguns metros de mim eu a verei pequenina e, se for afastada mais e mais, não poderei mais vê-la, então. No entanto, a laranja continua a existir, tão real quanto era antes, quando estava em minhas mãos. E aquela pequenina formiga que passeia na superfície desta laranja? Para ela, de que tamanho será a laranja, como lhe parecerá sua casca rugosa? E de que tamanho será esta mesma laranja para uma gigantesca criatura? Qual, então, o verdadeiro tamanho da laranja? Aquele que nós vemos, que a formiga vê, que o gigante vê?

Chego, então, à conclusão de que as coisas não têm tamanho nem forma e que nós, seres humanos, criamos o mundo que percebemos. E se o mundo que percebemos não for bem como supomos? E se formos também minúsculas formigas andando no dorso de uma laranja enorme, a que damos o nome de Terra? E por que enorme? Enorme apenas para mim, para nós, mas para outras consciências pode, na verdade, não passar de uma pequena laranja. Ou, quem sabe, uma pequena célula pertencente a algum imenso organismo.

Esta idéia me surgiu no dia em que li um artigo que dizia que experiências realizadas em 1924, na Rússia, provaram que o pensamento humano emite ondas de alta freqüência e que os elétrons que formam essa onda são produzidos no cérebro. Ao mesmo tempo, aprendi também que no universo encontramos partículas atômicas – os prótons cósmicos – carregadas de elevada energia, milhares de vezes mais altas que a energia que recebemos do sol. E ainda não descobriram a possante fonte de energia que possa ser o canhão desses prótons cósmicos. Seriam os quasares as fontes desta energia? Porque li uma vez que os quasares são certos objetos celestes, formados por grandes e luminosas nuvens de gás, que se compõem de bilhões de estrelas e que produzem uma energia incrível, mais energia do que toda uma galáxia, mais energia do que um octilhão de bombas de hidrogênio, e enviam raios de luz e ondas de rádio desde pontos que podem distar até 10 bilhões de anos-luz.

Sei que existe uma lei que se perde nos alvores da civilização, que diz: Assim como é em cima, assim é em baixo. Baseada nesta lei, fiz uma rápida comparação entre o funcionamento do corpo humano e o funcionamento dos corpos celestes.

Se no corpo humano observamos uma consciência que controla a atividade de todos os seus órgãos e de todas as células que constituem esses órgãos, no Universo esta mesma consciência controlaria então o movimento das galáxias e das estrelas. E não teriam as galáxias ou grupos de galáxias uma função universal, assim como os órgãos do nosso corpo possuem uma função em nosso organismo? E se o pensamento humano é capaz de produzir ondas magnéticas, capaz de criar elétrons, então os prótons cósmicos, esta energia formidável de origem ainda desconhecida, seriam produzidos por uma fonte que corresponderia à Mente Universal? Seriam os quasares gigantescas células desta Mente Universal? E, neste caso, existiria apenas uma Mente Universal, ou várias, cada uma delas pertencendo a um grupo imensurável de corpos celestes?

Meu amigo, neste ponto, eu faria uma pergunta: E como funcionaria esta Mente? Quais seriam seus conhecimentos e qual a sua relação com o homem? Seria esta Mente uma memória Universal? Pois, se no reino cósmico, além da velocidade da luz, deixam de existir os limites de tempo e de espaço, esta Mente conteria então todo o conhecimento intelectual e científico conseguido pelos seres viventes, no passado e no futuro. Seria ela os Arquivos Acáshicos?

Muito bem, meu amigo, aqui fica uma dúvida que tenho: A mente humana é capaz de harmonizar-se com outras mentes humanas, havendo então aquele fenômeno conhecido por telepatia. E não seria então capaz de também harmonizar-se com a Mente Universal e, nesta telepatia suprema, absorver qualquer tipo de conhecimento? Será que então poderia alcançar a Verdade? Poderia vislumbrar o futuro? Mas, neste caso, estará o futuro predeterminado? Ou ele se constrói do presente? Podemos prever o futuro? Podemos modificar o futuro? Mas, se ela já está previsto, onde fica o livre arbítrio? E, se existe o livre arbítrio, como pode estar o futuro predeterminado?

Sabe, meu amigo, estas coisas me confundem. Eu aprendi uma vez, e nunca mais me esqueci, que a mente humana cria, em planos superiores, os acontecimentos que se projetarão futuramente no mundo. Como se nossa mente formasse, numa espécie de matéria sutil, moldes que um dia se condensariam no plano material. E aprendi também que, não somente nosso pensamento faz isso, mas também a vontade de seres superiores que tomam conta do destino do nosso mundo. Eles também formam, com suas mentes, os moldes dos acontecimentos futuros. Neste caso, o vidente seria então a pessoa capaz de ler esses registros e, dessa maneira, poderia prever aquilo que irá acontecer.

Mas agora, penso eu, se o nosso pensamento pode criar formas etéreas, também deve ser capaz de modificar aquelas que já foram criadas. Deve ser por isso que muitas profecias não dão certo, não é? Quem sabe quantas vezes, com a nossa vontade, alteramos os acontecimentos que iriam ocorrer num futuro próximo ou mesmo distante?

Acredito que isto não faça diferença porque, a essas alturas, o tempo é o que menos importa. E será que o tempo existe? Eu sei que um dia o homem inventou uns aparelhos para contar o tempo, criou os dias, as horas, os minutos, os relógios e agora vive escravizado a isso tudo. Quando penso nisso, lembro-me da história que uma vez ouvi não sei de quem: "Era uma vez um Ser Superior que vivia num mundo muito diferente do nosso. Um dia ele resolveu fazer uma viagem pelo espaço e conheceu a terra. Aproximou-se para ver como viviam os habitantes daquele planeta tão bonito, e assustou-se. Viu tanta coisa errada, tanto ódio, tanta guerra, tanta ignorância das leis universais, que resolveu dar uma ajuda àquela gente. Pensou então: Posso fazer isso num piscar de olhos... Eles precisam tanto de ajuda. E então o Ser Superior projetou-se para a terra, para uma criança que nascia naquele momento. Mas, naquela fração de segundo, quando mergulhava no recém-nascido, algo lhe passou pela mente: Mas aqui, neste planeta, existe uma coisa chamada Tempo. Quantos anos terrenos terei que ficar encarcerado, num corpo físico, numa matéria tão densa? E, neste momento, a criança lançou ao mundo o seu primeiro choro."

Veja só, meu amigo, esta questão de tempo realmente me atrapalha. Olho meu cão, de quatro anos, adulto; poucos anos mais e entrará na velhice. será que o tempo para ele conta como para mim? Será que seus quatro anos de vida passaram para ele como para mim correram os últimos quatro anos que vivi? E estes insetos de vida tão efêmera? Vinte e quatro horas, para eles, terá a duração de apenas um dia?

Se até mesmo para nós o tempo difere... Você quer ver? Será que para um náufrago solitário, numa frágil balsa ao sabor das ondas do mar, uma semana tem a mesma duração da nossa semana, tão corrida, atribulada, da casa para o trabalho, do trabalho para a casa? Duvido...

Até mesmo no nosso dia a dia o tempo nos confunde. Por que será que os momentos ruins passam tão devagar e os momentos bons são tão rápidos? Você já reparou como meia hora de uma conversa agradável passa muito mais velozmente do que meia hora na cadeira de um dentista?

Veja só, toda esta carta tão longa começou por causa dos Borboletas Azuis e da pesquisa da verdade. Continuo sem encontrá-la. Vivo num mundo no qual não posso confiar. Sei que todas as sensações que meus sentidos me transmitem não são dignas de confiança. E, ainda mais, qualquer impressão sensorial passa por uma longa estrada de nervos até alcançar o cérebro, onde então se forma a impressão da coisa. Fico eu a pensar: As sensações estarão nas coisas ou no cérebro? Porque sem cérebro, não existem mais as formas, os cheiros, os sabores, os sons. Vivo cercado por estas formas que meus sentidos me mostram, mas sei que elas podem não ser da maneira como as percebo. Olho em minha volta e defino as coisas que me cercam: Isto está perto, aquilo está longe, ou adiante, ou à esquerda, ou à direita, ou em cima, ou embaixo, e o que é isto tudo senão formas de percepção? Estarão os objetos nesta ou naquela posição? Aqui ou ali? Serão grandes ou pequenos? Ou tudo isso é uma só coisa, ou outra coisa, apenas com referência a nós mesmos?

Uma coisa aparece de uma maneira para nossos olhos, de outra sob o microscópio e diferente ainda se olharmos através de um telescópio. Uma gota d’água, aparentemente límpida e cristalina à olho nu, mostra uma variedade incrível de vida que se agita, quando vista sob poderosas lentes.

Olho o céu estrelado e sei que estou olhando para o passado, porque o brilho daquelas estrelas leva milhões e milhões de anos luz para chegar até nós. Então, como será, na verdade, o céu do meu presente? Nunca irei saber, ou melhor, saberei daqui a milhões e milhões de anos. E fico pensando nos nossos sábios, que estudam este céu passado e constróem nossas verdades presentes sobre bases que talvez já nem mais existam!

Meu amigo, onde está a Verdade?

É nessas horas que me sinto pequena, minúscula como aquela formiga que passeia na laranja, menor ainda, como uma partícula de uma ínfima célula pertencente a um organismo enorme. Mas uma partícula pensante, que raciocina e pergunta: Onde está a verdade? E as células, será que elas também pensam? Quem sabe? Pelo menos executam um trabalho perfeito e racional, como se tivessem inteligência. Talvez tenham mesmo...

Temos a mania de dizer que somente nós, os maravilhosos e perfeitos seres humanos, raciocinamos e temos consciência. Será mesmo? Penso que se assim fosse, seríamos capazes de conhecer a Verdade...

E aqui estamos nós, cercados por formas talvez ilusórias, rodeados por um Universo que já passou, acompanhando o ritmo de um tempo que não existe, caminhando para um futuro... Que futuro, se o tempo nós mesmos o criamos?

Meu amigo, em meio a toda esta confusão, faço a você uma última pergunta: Quem sou eu? Quem é você? Quem somos nós, pobres seres humanos, tão crentes no mundo que nos cerca, tão inconscientes da Verdade que nos rodeia? Que Verdade? Quem tem a Verdade? Se ela está com os Borboletas Azuis, talvez então esta carta nunca chegue às suas mãos; se não, receba com ela o abraço carinhoso de sua amiga e irmã,

Márcia.

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Texto de: Márcia Villas-Bôas

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